Canibalismo: O Maranhão que adota métodos de terror do Estado Islâmico
Ronalton, que havia sido preso por assalto, foi desossado. Separaram
pés, mãos, vísceras, coração, rins, fígado e seus pedaços foram
colocados em sacolas. Cozinhado na água com sal para evitar o mau
cheiro, teve alguns órgãos comidos em rituais pelos próprios presos e o
restante jogado no lixo em sacolas. Quando o advogado conseguiu um
alvará de soltura, havia literalmente desaparecido.
O relato – que mais parece conto de terror e está em matéria de Marcelo Sperandio, na revista Época
– foi dado por um funcionário do setor de inteligência da Secretaria de
Segurança Pública do Maranhão à CPI do Sistema Carcerário da Câmara dos
Deputados.
Já o resto de Rafael, preso por homicídio qualificado,
foi encontrado, também desossado, em pedaços dentro de um saco
plástico. Não encontraram seu crânio, nem a pele do rosto. Mas o couro
cabeludo, pés, órgãos genitais. O funcionário mostrou fotos que do que
restou do corpo à CPI.
O local do suposto canibalismo não poderia
ser outro além do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís,
onde, provavelmente, fica um dos sete portais do Inferno.
O
complexo acumula dezenas de mortes violentas, decapitações, esfolamentos
e mulheres entregues para serem estupradas a fim de garantir a
segurança de seus familiares presos. De lá de dentro, presos já mandaram
incendiar ônibus na capital, com passageiros queimando até a morte.
Segundo a matéria, o funcionário informou que os casos de canibalismo
teriam sido abafados pelo antigo secretário.
Herdada pelo
governador Flávio Dino, que agora tem o dever de desarmá-la, a bomba foi
construída ao longo de seguidas administrações da família Sarney e
amigos no Estado.
Decapitar e comer pessoas, estuprar parentes de
presos, atear fogos em passageiros parecem atos de pessoas fora de si,
mas há uma ação racional por trás de ações ou relatos: demonstrar força
para outros grupos ou facções em disputas de poder, questionar a
capacidade do poder público para punir, controlar a população que está
em seu território de influência, ganhar aquela parte da mídia que
divulga fatos de forma acrítica em nome da audiência.
De certa
forma, o que aconteceu em Pedrinhas assemelhava-se às práticas dos
assassinos do grupo terrorista Estado Islâmico. A publicidade, interna e
externa, de seus feitos ajudam no controle da população e a afastar os
inimigos. Narrativas de terror não precisam ser todas
verdadeiras. Precisam que as pessoas acreditem nelas para funcionar – e
tanto facções criminosas quanto o EI são bons nisso.
A
penitenciária de Pedrinhas se tornou terra de ninguém, um depósito
superlotado de gente, juntando presos de facções criminosas rivais no
mesmo espaço. Não consigo acreditar nas justificativas do poder público
dadas no ano passado de que isso era uma reação às suas políticas de
segurança. Pelo contrário, isso é consequência de sua incapacidade de
dar respostas.
O Maranhão se acostumou a ser um Estado seletivo:
presente para garantir a qualidade de vida de alguns poucos em
detrimento da maioria da população. Prova disso é que apresentava a
menor expectativa de vida na média de homens e mulheres (68,6 anos) de
acordo com dados divulgados pelo IBGE – cinco anos abaixo da média
nacional (73,76). E possuía a segunda pior taxa de mortalidade infantil
do país, apenas atrás de Alagoas, com 29 crianças com menos de um ano
mortas para cada mil nascidas vivas. A média nacional era de 16,7 para
1000. E as três piores cidades em renda per capita pertenciam ao
Maranhão, de acordo com o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal.
O
Maranhão, sob o domínio dos Sarney por décadas, não só permaneceu nas
piores posições nos indicadores sociais, mas também viu suas terras
serem desmatadas e poluídas, latifúndios crescerem, trabalhadores serem
escravizados e assassinados, comunidades tradicionais serem ameaçadas e
expulsas, a educação ser sucateada, os meios de comunicação ficarem
concentrados nas mãos de poucos políticos.
Isso é assustador,
considerando que o Maranhão é um Estado rico. Possui jazidas minerais e
gás natural. Água doce em abundância. Partes de seu território estão na
Amazônia e no Cerrado. Tem localização privilegiada, com um porto mais
próximo dos Estados Unidos e da União Europeia do que os do Sul e
Sudeste.
Por que então não foram construídos e finalizados outros
presídios antes? Por que a polícia não foi realmente empoderada para
investigar crimes e o sistema penitenciário para gerir aquele portal do
Inferno? Por que recursos não foram gastos na implementação de políticas
públicas de segurança, mas também de educação, saúde, transporte,
cultura, habitação, alimentação…?
Os relatos violentos de
Pedrinhas, tratados de forma crítica e não pelo sensacionalismo
espreme-que-sai-sangue são fundamentais para que nos lembremos que são
pessoas os seres depositados nesses ambientes insalubres. Eles têm
contas a prestar com a sociedade mas, de acordo com a legislação, isso
não inclui serem devorados.
Nós, jornalistas, temos nossa parcela
de culpa no processo desumanização dos presos através das histórias que
contamos de forma incompleta e sensacionalista, visando a audiência.
Ajudamos a desconectar os presídios do restante do tecido social,
tornando-os uma espécie de limbo para onde vai quem atentou contra a
sociedade. E o que acontece no limbo, fica no limbo mesmo. Afinal de
contas, foram eles que pediram isso, não?
O problema é que não
fica. E o ódio gestado nos outros presos durante esse processo bisonho
de “ressocialização'', por tudo o que viram e viveram, será levado para
fora quando retornarem ao convívio social. E quem vai sofrer não são os
governantes, mas a população que não tinha nada a ver com a história.
A
assessoria de comunicação do governo do Estado do Maranhão entrou em
contato com o blog após a publicação do post para informar que não houve
mais rebeliões durante a gestão Flávio Dino. E que ,de janeiro a junho,
o número de mortes caíram 64% e o de fugas, 70%, em comparação ao mesmo
período do ano passado. Ações para melhorar a estrutura do presídio e
para humanizá-lo, o que inclui educação para, até agora, 130 presos e
melhoria do serviço médico, foram implementadas.
Do Blog do Sakamoto
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